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Maçonaria: Problemas modernos ou antigos?

Introdução

Choque de gerações, novos tempos, entre outros assuntos que envolvem mudanças na Maçonaria costumam gerar bastante polêmica.

No entanto, este artigo se propõe a demonstrar que nem tudo é o que parece e que, muitas vezes, aquilo que é interpretado como um problema da modernidade, na realidade, não tem nada de novo.

Antes da Era da Informação, a Maçonaria brasileira no geral, bem como uma grande quantidade de lojas em particular, viviam numa espécie de bolha de realidade, isoladas do restante do mundo e da história maçônica em uma série de coisas. Afinal, manuscritos, livros e até mesmo conversas com o resto do mundo ficavam restritos a uns poucos.

Mas a realidade atual é outra. E, através de dez exemplos reais, este artigo demonstrará que muitas vezes aquilo que é percebido como uma mudança ruim, na realidade, nada mais é do que um fenômeno antigo.

1) Ritual canibalizado?

Algumas semanas atrás, um amigo me ligava e dizia-se chateado com os desdobramentos do Rito Escocês Antigo e Aceito no Grande Oriente do Brasil. Segundo ele, o ritual havia sido canibalizado e havia uma insatisfação geral na loja com seu conteúdo. Cogitavam até trocar de Potência.

Pedi pra ver o ritual e pude constatar que diversos dos enxertos que foram feitos ao rito nas últimas décadas haviam sido removidos. De modo que aquele era um dos rituais mais próximos do ritual francês de 1829 em prática aqui no Brasil. Quando esclareci isso a meu amigo, ele demonstrou enorme surpresa.

Não importa se alguém é contra ou a favor da revisão dos rituais e eliminação dos enxertos. Fato é que muitas vezes os rituais revisados podem se basear numa prática mais antiga. Não se pode considerar que isso seja uma inovação!

2) Sem Entrada Ritualística

Numa crítica recente às sessões virtuais, presenciei alguns irmãos dizendo que não poderiam considerar aquilo como sessão porque não havia como ter entrada ritualística em uma sessão virtual.

Independente da posição que alguém tenha sobre sessões virtuais, ocorre que entrada ritualística não é prevista em diversos ritos ou trabalhos. Rituais do York, Emulação, entre outros, preveem que os trabalhos comecem com os irmãos já em loja.

Mesmo no Rito Escocês Antigo e Aceito, a entrada ritualística não consta nos primeiros rituais. O que não quer dizer que ela seja ruim. Apenas, não se define Maçonaria a partir desse fato.

3) Contra o Espírito da Coisa?

Outra crítica às reuniões virtuais diz que conceder graus de forma virtual quebraria o espírito da coisa, já que não teríamos ritualística e a passagem se resumiria a uma mera leitura.

A crítica a isso ser um processo sem graça e bem inferior à teatralidade e às cerimônias das sessões não deixa de ser bastante válida. O problema é que novamente isso é apontado como um problema moderno.

Se alguém atentar para os rituais originais de Charleston do REAA, produzidos no começo do século 19, verá que a ritualística era extremamente simples e os graus eram quase que essencialmente leitura.

A teatralização e maior elaboração das cerimônias foi algo que começou a ser desenvolvido meados do século 19 em diante.

4) Uso de Novas Tecnologias

Outro problema apontado como recente seria o uso de novas tecnologias.

Porém, uma gravura datando de cerca de 1900, no acervo do museu do Rito Escocês do Supremo do Norte dos EUA (NMJ) mostra um retroprojetor sendo usado em loja para ilustrar o conceito dos graus.

Em outras palavras, a Maçonaria já incorpora novas tecnologias a favor de suas sessões há mais de 120 anos!

5) A Maçonaria agora aceita mulheres?

Recentemente, a Grande Loja Unida da Inglaterra postou uma foto conjunta com a Maçonaria feminina.

A foto gerou vários comentários raivosos de maçons brasileiros, mas o que chamou a atenção foram alguns comentários reclamando da ‘modernidade’ no aceite de mulheres na Maçonaria, o que uns classificavam como traição, outros como comércio, uns tantos ainda como o presságio apocalíptico do fim da Maçonaria.

Ocorre, porém, que existem duas Grandes Lojas femininas na Inglaterra com quem a GLUI tem amizade: a Honourable Fraternity of Ancient Freemasons, que foi fundada em 1913, e a Order of Freemasonry for Women, que se tornou estritamente feminina na década de 1920.

Como se pode ver, a Maçonaria feminina na Inglaterra tem literalmente mais de um século. Além de décadas de amizade com a GLUI. Ou seja, não se trata de uma questão recente.

6) Estão desrespeitando os Landmarks?

Analogamente, não é incomum ver maçons alegando que algo vai contra os Landmarks quando veem coisas que lhes causam estranheza. E qual não é o espanto de muitos ao saber que os landmarks de Mackey, criados em 1858, nunca foram adotados como critério pela Inglaterra, que é quem mais dá as cartas em termos de regularidade maçônica no mundo e tem seus próprios Princípios de Regularidade, nem são adotados como padrão universal pelas Grandes Lojas norte-americanas.

Isso sem contar que, ao longo do século 19, vários compilados de landmarks foram propostos por autores diferentes. Nenhum deles foi adotado de forma universal.

Discussões, portanto, revolvendo em torno de coisas que destoam os landmarks de Mackey também não podem ser tratadas como inovações.

7) Revisionismo?

Não são poucos os que vociferam contra irmãos que se levantam para denunciar as ideias e alegações fantasiosas de autores como Rizzardo da Camino, Jorge Adoum, Jean-Marie Ragon, entre outros. Alegam que fazer tal coisa seria matar a alma da Maçonaria.

Mas, novamente, essa questão está longe de ser uma atitude revisionista moderna.

Muito pelo contrário, a própria loja Quatuor Coronati 2076, da Grande Loja Unida da Inglaterra, foi fundada exatamente porque os maçons ingleses já questionavam desde, pelo menos, meados século 19, as ideias fantasiosas propagadas por alguns sobre as origens e desenvolvimentos da Maçonaria.

E os registros históricos da Quatuor Coronati indicam que a loja questionava ideias lendárias propagadas por ninguém menos do que o próprio James Anderson, autor das famosas constituições que carregam seu nome.

Ou seja, a Maçonaria nunca teve um autor como sagrado ou acima de qualquer crítica, e sempre teve pessoas que criticaram a romantização de suas origens.

8) Maçons não estudam mais?

Igualmente é comum ver irmãos reclamando que nos tempos deles os estudos eram sérios e supostamente muito mais conhecedores de Maçonaria do que atualmente, como se os tempos atuais fossem piores.

No entanto, em 1875, Albert Mackey fez a seguinte reclamação:

“No entanto, nada é mais comum do que encontrar maçons que estão em trevas totais sobre tudo o que se relaciona com a Maçonaria. Eles são ignorantes de sua história – eles não sabem se é uma produção de cogumelos hoje, ou se remonta a idades remotas em sua origem. Eles não têm compreensão do significado esotérico de seus símbolos ou suas cerimônias, e dificilmente estão familiarizados com seus modos de reconhecimento. E, no entanto, nada é mais comum do que encontrar tais pseudo-sábios de posse de altos graus e às vezes honrados com assuntos elevados na ordem, presentes nas reuniões de lojas e capítulos, intermediando com o processo, tomando uma parte ativa em todas as discussões e teimosamente mantendo opiniões heterodoxas em oposição ao juízo de irmãos de maior conhecimento.” (Reading Masons and Masons Who Do Not Read)

Ou seja, o problema de haver uma grande quantidade de maçons ignorantes, e pior, ostentando altos graus, cargos administrativos, etc. não é exatamente um problema novo.

9) Aventais

Outra discussão que recentemente presenciei dizia respeito ao Rito Escocês Antigo e Aceito nas Potências da COMAB. Alguns irmãos reclamavam que a COMAB teria “suprimido as rosetas” em prol do típico M. B. no avental de Mestre.

Outros ainda discutiam o padrão dos aventais de Mestre Instalado. Novamente, acusando alguns de quererem inovar.

Ocorre, porém, que um manual dos graus franceses publicado em 1820, em Paris, descreve o ritual de Mestre como tendo justamente o M. B. utilizado pela COMAB.

E, pra piorar, temos o fato de que Instalação é algo inexistente na origem do Rito Escocês Antigo e Aceito, tendo sido incorporada ao rito aqui no Brasil e em outros países. Ou seja, na origem, o R.E.A.A. não tinha avental de Mestre Instalado, de modo que não importa o padrão, já que não há um padrão original a ser seguido.

10) Egrégora

Outra preocupação muito constante entre alguns irmãos é que determinadas posturas corporais ou pequenos desvios ritualísticos possam comprometer a egrégora da loja. Reclamam que as novas gerações não atentam para coisas que poderiam supostamente quebrá-la.

Sem entrar no mérito da questão de se egrégora existe ou não, fato é que até pouco tempo atrás não se ouvia falar tal termo em Maçonaria. E ele certamente não figura em nenhum ritual histórico da Maçonaria nos seus principais ritos e sistemas.

Ou seja, ironicamente, o conceito de egrégora é, em si, a inovação, não os desvios que poderiam supostamente comprometê-la!

Conclusão

A lista poderia continuar, com dezenas de outros exemplos, mas os dez acima já são mais do que suficientes para ilustrar o ponto.

Como se pode perceber, uma parte considerável dos incômodos levantados por alguns irmãos com as supostas mudanças ou inovações dos tempos atuais ou das novas gerações estão muito longe de ser assim. Pelo contrário, às vezes representam até mesmo um resgate de práticas mais antigas.

É importante compreender que a postura do “porque sim” ou do “sempre fizemos desse jeito nesta loja”, para justificar ideias ou práticas, não sobrevivem à possibilidade de escrutínio que a Era da Informação nos trouxe, em que fontes podem ser checadas e informações outrora tidas como verdadeiras podem ser facilmente invalidadas.

A Maçonaria não corre, portanto, risco de extinção por esse processo. Nem é justo atribuir tais coisas, como alguns fazem, ao “danoso espírito inovador.”

Bibliografia

DYER, Colin. The history of the first 100 years of Quatuor Coronati Lodge No. 2076. Disponível em: <https://www.quatuorcoronati.com/about-qc-lodge/centenary-booklet/>. Acesso em: <08/09/2021>

JANTZ, Percy. The Landmarks of Freemasonry. Disponível em: <http://freemasonry.bcy.ca/texts/landmarks.html>. Acesso em: <08/09/2021>.

MACKEY, Albert. Reading Masons and Masons Who Do Not Read. The Master Mason, 1875.

SIMON, Jacques. REAA – Rituel des trois premiers degrés selon les anciens cahiers. Éditions de La Hutte, 2010.

RODRIGUES, Luciano R. Egrégora: um conceito totalmente estranho à tradição maçônica. Disponível em: <Egrégora: um conceito totalmente estranho à tradição maçônica>. Acesso em: <08/09/2021>

Magic Lanterns: Illuminating the Teachings of Freemasonry. Disponível em: <https://scottishritenmj.org/blog/magic-lantern-freemasonry>. Acesso em: <08/09/2021>

Manuel Maçonnique, ou Tuileur de tous Les Rites de Maçonnerie Pratiqués en France. Paris, 1820.

Ordo Ab Chao: The Original and Complete Rituals of the first Supreme Council, 33º – Vol. 1. Boston: Boemandres Press, 1995.

Women Freemasons. Disponível em: <https://www.ugle.org.uk/becoming-a-freemason/women-freemasons>. Acesso em: <08/09/2021>.

HFAF: Our history. Disponível em: <https://hfaf.org/about-us/our-history>. Acesso em: <08/09/2021>.

The Order of Women Freemasons: Our History. Disponível em: <https://www.owf.org.uk/about-us/our-history/>. Acesso em: <08/09/2021>.

Sobre o Autor

Luis Felipe Moura é M∴ M∴, membro da ARLS São Paulo de Piratininga 250 (GOP/COMAB). É bacharel em Letras (inglês), mestre em Teologia e em Psicanálise, atualmente trabalha como psicanalista e professor de Bíblia Hebraica.

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