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O “Rito Francês”: uma identidade ideológica ou estrutural?

Roger Dachez – 05 de maio de 2013

As disputas maçônicas contemporâneas, essencialmente centradas em competições obedienciais bastante irrelevantes, infelizmente, muitas vezes levam os maçons a esquecer algumas verdades essenciais de sua história. A oposição agora clássica, acredita-se, entre o Rito Francês e o Rito Escocês Antigo e Aceito, para citar apenas uma dessas falsas brigas, é um exemplo notável.

Gostaria de me limitar aqui a recordar alguns fatos elementares a fim de resolver as ambiguidades que ainda se prendem à identidade do Rito Francês em nosso tempo.

O Rito Inglês Moderno – antes de ser tardiamente chamado de “Rito Francês” no continente, praticado dentro da primeira Grande Loja de Londres fundada em 1717, levou, por sessenta anos, uma luta um tanto irrisória e sem muito objetivo, ao que parece, contra o Rito Antigo, a Grande Loja que respeitava seus usos tendo sido criada, por sua vez, em 1751. Esse conflito era apenas (e puramente) inglês, devemos sublinhar isso, e não teve incidência na França, mas às vezes parece que certos “aficionados” na história, apoderaram-se de um caso exclusivamente insular para dar ao Rito Moderno características originais que seus protagonistas sem dúvida teriam rejeitado.

Este não é o lugar para expor em detalhes esta famosa briga, à qual certamente voltarei um dia apropriado, porém alguns elementos podem ser mencionados. Assim, os Antigos traçaram uma lista de censuras que dirigiram aos Modernos, responsáveis ​​a seus olhos por terem alterado o depósito inicial da tradição maçônica que os Antigos afirmavam ter respeitado escrupulosamente – nós já ouvimos muitas vezes essa “música” desde então …

Entre as queixas dirigidas à Grande Loja dos Modernos, uma notou em particular o abandono das orações durante as cerimônias ou a omissão das festas de São João. Esses únicos exemplos deram crédito à ideia de que os Antigos representavam um movimento religioso e conservador, em oposição aos Modernos, com fama de serem mais tolerantes, abertos e liberais – mais “moderno” em uma palavra, se esquecermos que esse qualificador, atribuído por escárnio à primeira Grande Loja, sempre foi rejeitado por ela, considerando que era quase um insulto…

O Franco-Maçons (1735)
Uma assembleia da Grande Loja de Londres (Modernos).
Observe a posição dos Vigilantes (à direita) e dos Candelabros.

Infelizmente, nada disso resiste a um exame minucioso e, como o trabalho da erudição maçônica inglesa tem demonstrado suficientemente por várias décadas, [1] essas acusações eram aparentemente infundadas. Nada ideológico realmente distinguia os Antigos dos Modernos, especialmente as considerações religiosas. As razões de sua oposição inicial foram, sem dúvida, de natureza socioeconômica (os Antigos recrutados em um ambiente geralmente mais modesto do que os Modernos), mas também “étnicas” – porque para os ingleses, os irlandeses, a maioria entre os fundadores da “nova” Grande Loja, eram realmente outro povo (estrangeiros). Poucas décadas depois, no entanto, a Grande Loja dos Antigos tornou-se tão inglesa quanto a primeira e sua estrutura sociológica muito semelhante. Certamente é por isso que a fusão final das duas Obediências foi tão fácil. Os Artigos da União de 1813, dando origem à atual Grande Loja Unida da Inglaterra, resultou apenas em ajustes simbólicos e rituais bastante limitados, porque nada mais, de fato, separava os duas Obediências …

Mas desde pelo menos o final dos anos 1730, o Rito Moderno na França, o único que existia – por assim dizer, simplesmente chamado de “Maçonaria” – ganhou sua independência. [2] Conhecemos o brilhante destino que teve em toda a Europa. Fala-se pouco de “Rito Francês” antes dos primeiros anos do século XIX, e é então apenas para distingui-lo, por exemplo, do Rito Escocês Retificado (RER) ou do Rito Escocês Filosófico, ambos formados no último quarto do século XVIII, aguardando a última vinda, ou seja, o Rito Escocês “Antigo” e Aceito (REAA), cujos rituais não seriam escritos, para os graus azuis, até 1804. [3]

Plano da Loja dos Antigos (1760)
Observe o lugar dos oficiais e a ausência de um painel no centro.

O que então define o Rito Francês é o seu sistema simbólico e ritualístico, que contém todos os seus “traços” em um nível tradicional, [4] mas também sua identificação histórica com o Grande Oriente da França, herdeiro institucional da primeira Grande Loja, na França. No entanto, esta última ligação tem um significado ideológico? Certamente não. Louis de Clermont, Grão-Mestre de 1743 a 1771, praticou o Rito Moderno (que ainda não tinha esse nome!) E certamente não foi um revolucionário, enquanto o último Administrador do Grande Oriente da França antes da Revolução, Montmorency – Luxemburgo – também do “Rito Francês” – foi o primeiro emigrante da França!

Poderíamos multiplicar os exemplos à vontade, mas não é esse o meu assunto. Entendemos: não devemos confundir o invólucro e o conteúdo. Que, na segunda metade do século XIX, o Grande Oriente da França se identificou com o combate secular e republicano é uma coisa – que tem seu crédito. Se o Rito do Grande Oriente era, naquela época, como o de Louis de Clermont e do Duque de Antin, o Rito Moderno ou o Rito Francês, é outra coisa, que nada tem a ver com isso …

O Rito Francês veicula o mais antigo ritual conhecido e as tradições simbólicas da maçonaria especulativa: esta é a sua identidade fundadora, como o historiador pode restaurá-la, e as profundas alterações nos seus rituais no final do século XIX, não o mudam em nada. [5]

Além disso, desde o início da década de 1960, surgiram as chamadas formas “restauradas” ou “tradicionais” do Rito Francês, cuja origem remonta às obras fundadoras de René Guilly-Désaguliers. Seus rituais são de inspiração cristã e incluem, em particular, um juramento ao Evangelho, segundo o uso constante do Rito Moderno no século XVIII.

Um dos mais antigos painéis de loja pintados na França
(Rito “Moderno”, 1744-1745)

Confundir a ação histórica do Grande Oriente da França – corajosa e nobre – com uma certa vocação “messiânica” do Rito Francês, que se suporia destinada desde as suas origens a defender o ideal secular e a instaurar a República, é, portanto, um absurdo que os historiadores não podem deixar de apontar.

Sem esquecer, pela anedota, que no final do século XIX, existia uma obediência ultra-progressista, fortemente imbuída de anarco-sindicalismo, rejeitando as altas patentes e favorável à iniciação feminina, enquanto o Grande Oriente, nestes dois pontos, certamente não estava na mesma linha e até mesmo se opunha claramente a ela. Esta obediência “avançada” era chamada de Grande Loja Simbólica Escocesa [6] e praticava o Rito Escocês Antigo e Aceito!

É preciso se acostumar com isso: a história é implacável …

Notas:

[1] Notavelmente as valiosas contribuições de C. Batham, “A Grande Loja da Inglaterra de acordo com as velhas instituições, A Palestra Prestoniana de 1981”, Ars Quatuor Coronatorum [AQC] 94 (1981), 141-165; “Alguns problemas da Grande Loja dos Antigos”, AQC 98 (1985), 109-130.

[2] Isso é o que o próprio James Anderson anotou na 2ª edição das Constituições, publicada em 1738.

[3] O Guia Dos Maçons Escoceses (The Guide to Scottish Masons).

[4] Posição dos oficiais, ordem das palavras dos dois primeiros graus, posição dos castiçais, instrumentos do juramento, etc. as obras essenciais de meu mestre René Désaguliers, Os Três Grandes Pilares da Maçonaria, Paris, 1963 – Nova edição totalmente revisada por R. Dachez, Paris, 2011.

[5] Pode-se julgar isso lendo o excelente trabalho recentemente publicado por L. Marcos, Histoire Illustrée du Rite Français Paris, 2012.

[6] Fundiu-se em 1896 com a Grande Loja da França, criada dois anos antes, e deu-lhe vários grão-mestres e grandes oficiais.

Tradução: Douglas Luiz Vicente

Revisão: Julio Beles Lussari

Rodrigo de Oliveira Menezes

M.'.M.'. da Loja Amizade, Trabalho e Justiça nº 36, Or.'. de Umuarama, filiado ao Grande Oriente do Paraná, exaltado ao Sagrado Arco Real pela GLPR e filiado a mais 6 corpos Superiores distintos (SC33PR, MIGCMRSRFB, GCCTRFB, SCFRMB e GCKFRMB-PR).

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